«Quando não escrevia (ou seja, quando apenas debitava letras em papéis, algumas delas formando palavras e consequentes frases, mas sem nenhuma intenção de contar histórias, como responder a uma carta, pois sou do tempo dos correios, ou fazer relatórios e trabalhos de escola que, obviamente, nunca seriam realmente lidos), achava que os escritores eram uma espécie dentro da própria espécie humana. Quando não escrevia (ou seja, não planeava ser publicado, psicopata interessante, um tipo de exibicionismo que deveria ser melhor estudado por médicos e cientistas), acreditava que os escritores andavam pelo mundo a anotar em cadernos, blocos e mentalmente, histórias fantásticas que ficavam a espera que as musas donas daquelas narrativas aparecessem para tomar conta do trabalho, desencarnando personagens e tramas, desenrolando literários novelos. Quando não escrevia (se é que isso um dia foi uma verdade), reflectia sobre onde os escritores guardavam as suas ideias, chagando a conclusão que todos tinham uma "gaveta". A tal "gaveta" tinha (e tem) aspas, pois cedo aprendi que tudo pode ser metaforizado, ou como escreveu o poeta Gilberto Gil para ser cantado numa bela canção: "Uma lata existe para conter algo/ Mas quando o poeta diz: "Lata"/ Pode estar querendo dizer incontível". E foi mais ou menos ao mesmo tempo em que realizei que poderia ser (mesmo que mau, nada tem que ser bom para existir) um escritor, que escrevi um dos meus primeiros contos, que dizia mais ou menos assim:
"Na gaveta do escritor cabe tudo, cabem todos.
Na gaveta do escritor há rascunhos, há rabiscos, há ladrões.
Há fadas, há cabras, há poemas, espiões.
Amigos, a gaveta do escritor é, como diz o outro, um perigo.
É melhor não abri-la sem mandato do juíz, sem carta do ministro, sem autorização.
Da gaveta do escritor podem sair delírios, unicórnios, maldades.
Podem sair belas morenas, mas também dragões.
É na gaveta qe o escritor esconde a verdade, seus medos, manias, mistérios, ansiedades.
É lá que está um futuro prémio Nobel, um manifesto surrealista e uma apólice de seguro vencida.
É uma verdadeira Torre de Babel, lá falam-se línguas secretas, onde as frases começam por virgulas e terminam com dois pontos:
O escritor mente quando diz que não tem uma gaveta. Por melhor que seja, há sempre um conto incompleto, um artigo esquecido, um romance de fundo.
A gaveta do escritor é um túmulo.
Ali jazem segredos, personagens, mundos.
Se procurar com jeitinho vai encontrar um labirinto de Borges, um Pessoa obscuro.
Há canetas sem tinta, papelinhos, envelopes.
Há cigarros mofados, clips entortados, piratas torturados, miúdos reguilas, filósofos, velhotes.
Há agendas repletas, fitas cassettes, fotos antigas.
Há pó, há lixo, há vestigios do crime, há aspirinas.
Mas se quer mesmo abrir a gaveta, faça com uma certa precaução.
Passe na Papelaria Fernandes, compre um fato de abrir gavetas ou de assaltar estantes, vá então a duas ou três igrejas distantes. Peça a um padre para fazer a extrema-unção.
Depois espere que o escritor saia para encontrar a sua musa ou para tomar seus copos ou para pedir sua esmola.
Entre no seu quarto não de pé mas sim de cócoras, tomando cuidado para (...) não rasgar a blusa.
Aí então atire-se sobre a mesa, repire fundo e abra a gaveta.
Leia sem grandes citérios o que está lá escrito, marimbe-se para a falta de unidade literária, com o maralhau de estilos.
Dê gargalhadas com o que vão dizer os críticos.
Depois pense em plantar uma árvore e ter um filho.
Foi o que eu fiz. E virei um livro."»
Edson Athayde
In "Os meus livros", Maio 2009
Bárbara de Sotto e Freire
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