quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Regresso às aulas

Estes dias encontrei um "tesouro".
Um "tesouro" que julgava esquecido estava religiosamente guardado no meio de um livro de poesia, que abri ao acaso.
Foi no meu 7º ano de escolaridade, decorria o ano de 1993.
O meu professor de francês, um homem distinto, com uma energia contagiante, entrava na sala e dizia "Bonjour mes enfants", ao que nós respondíamos, em coro uníssono, "Bonjour monsieur".
Assim, começou a primeira aula de francês. Com o professor a entrar e a sair da sala inúmeras vezes até que nós conseguimos dizer de forma perfeita, aquilo que se tornaria a rotina diária.
O professor Coelho de Moura era um típico homem das letras. Com uma cultura vastíssima, e com um poder de dicção inconfundível. Nesse ano, um ano tão doce quanto amargo, o nosso projecto cultural estava relacionado com a vida e obra do rei D. João II.
Foi um dos projectos mais espectaculares em que me envolvi até hoje, tendo em conta que tinha apenas 12 anos!
Uma das iniciativas do projecto foi uma peça de teatro, exibida, entre outros locais na Casa Museu Teixeira Lopes. Eu era a voz off, que começava e encerrava a peça.
Durante anos julguei perdido o texto, escrito pela mão do professor Coelho de Moura, que me catapultou para uma paixão de um mundo outrora desconhecido. Reencontrei-o então no "O meu primeiro livro de poesia" de Sophia de Mello Breyner, a marcar a página onde está o poema "O Mostrengo".
Reza assim:
Sala de exposições tendo nas paredes expressões plásticas, fotográficas, etc., referentes à época (sec. XIV).
No palco os mastros duma nau, um rolo de pergaminho com o mapa de África, Trono à direita.
"Música aquática" de Haendel.
Escuro
Voz Off:
O que hoje somos depende do que outros antes de nós foram. O que eles fizeram, o que pensaram, o que sonharam, as vitórias que conseguiram, os insucessos que ultrapassaram, os obstáculos que venceram, a incompreensão dos seus contemporâneos, o elogio fácil, a censura difícil...
Hoje vamos chamar à nossa presença um dos maiores de nós.
Figura carismática de homem. Garboso em cima do seu corcel, o cabelo longo, ao vento, como se não lhe importassem ademanes de vaidade, os olhos negros, penetrantes, de quem lê os pensamentos dos outros, o rosto anguloso, de quem tem vontade firme, as mãos agarradas às rédeas como quem os passos incertos do animal; quando apeado, conserva as pernas afastadas, naquela posição de pessoa segura dos seus princípios e com vontade de os concretizar.
Batido pelo vento à beira-mar, não vê o nevoeiro, perscruta a terra que está para além do que ninguém vê.
À sombra do calcário trabalhado do Mosteiro da Batalha, fomos incomodá-lo no seu sono secular. Pedimos-lhe para vir contar-nos a sua vida. Perguntou-nos se era preciso voltar a viver. Respondemos-lhe que não. Ele nunca tinha morrido na recordação de Portugal. Então, disse-nos com um sorriso: "Se não morri, vou convosco".
Convosco, D. João II.
1º Quadro: Afonso V e D. João II;
2º Quadro: D. João II e Duque de Bragança;
3º Quadro: Diogo Cão;
4º Quadro: Pero Covilhã e Afonso Paiva;
5º Quadro: 4 astrónomos;
6º Quadro: D. João II e criado;
7º Quadro: Isabel a católica
Voz Off: "O Mostrengo"
O mais peculiar desta descoberta é que quando comecei a ler a voz off, constatei que ainda sabia todo o texto de cor, e deu-me um enorme gozo voltar a recordar todos os momentos e a emoção daquela peça de teatro.
O papel, esse, mais parece um pergaminho, e será guardado num sítio muito especial, porque, "o que hoje somos, depende do que outros antes de nós foram."

Bárbara de Sotto e Freire

Sem comentários: