quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

O meu divã de Marraquexe

Pela janela deste meu escritório, deste meu refúgio, desta minha pequena caixinha, baixo as persianas de modo que entrem apenas pequenos raios de sol, filtrados pela forma das mesmas. Lá ao fundo, bem ao fundo, o mar. Deito-me no meu pequeno sofá, com as pernas por cima do encosto, com a cabeça pousada sobre uma cadeira almofadada, e a face virada para o infinito. Ligo a minha mais recente aquisição musical – o CD de música clássica com sons de mar – na minha pequenina aparelhagem; coloco o som numa altura amena, ligo o aquecedor no mínimo... a Nina faz-me companhia. 

A Nina é uma cadela que encontrei abandonada a semana passada; ainda é muito pequenina, e tem os olhos cor de avelã escura. É preta e castanha e tem um focinho que maravilha qualquer alma. Juntamente com a Mia, a gata que puseram aqui na porta de minha casa faz agora três meses, dá-me à alma a ternura de que preciso para me sentar e escrever. Ambas são fonte de carinho, de meiguice, de paz. Ainda não estão bem acostumadas uma com a outra; a gata toma conta da cadela, e assume um papel maternal, embora defenda muito o seu território, e não permita à cadela muitas brincadeiras.
 Penso que se vão entender bem e num futuro próximo espero vê-las a dormirem juntas, a brincarem juntas e a fazerem-me sentir um pouco realizada.

Fecho os meus olhos perante estas réstias de sol, onde se vêm algumas partículas a pairar, e divago pela minha mente.
Vou para o meu lugar inventado, onde também eu não sou eu, mas a Bárbara... e estabeleço comigo mesma uma conversa franca e sincera, de tudo o que fui e sou, mas tudo não passa da minha imaginação, do meu lugar inventado, com a minha gente, com as pessoas que sonho, com as personagens que construo, por entre intervalos de sono.
Mas o meu lugar inventado, esse meu lugar, é de uma beleza tão idílica que se torna difícil de exprimir por palavras o que esse lugar é, para mim. As palavras tornam-se limitantes perante a magia do sonho, da ternura e das lambidelas da minha cadela, que me fazem estar entre dois mundos tão diferentes, mas igualmente reais.

Sento-me no meu divã de Marraquexe, numa varanda com soalho de madeira. A varanda é muito grande e extensa. Atrás de mim uma grande porta de correr, toda ela em vidro, por onde o ar passa e remexe as cortinas de seda fina, quase transparentes. Ainda atrás de mim algumas plantas, num canteiro com um design sui generis... ao meu lado uma pequena mesa onde repousa um livro, uma lapiseira, e um copo com algo alaranjado no seu interior. Um sumo de toranja e manga, com dois cubos de gelo. Óptimo! Do meu outro lado e um pouco atrás está o meu cavalete, com uma tela em branco. Uma pequena mesa tem os meus pincéis, as minhas tintas, os meus jarros de água, e algumas misturas de cores. Para além da varanda, de madeira cruzada, talvez de carvalho ou de cerejeira, estende-se o infinito. Uma praia deserta, de areia branca e fina, e depois, logo ali, bem perto da minha varanda inventada, o mar. 
A maré está baixa e vêm-se algumas rochas que parecem flutuar sobre a leveza das águas calmas e límpidas. Não vejo mas sei que logo ali há pequenos cardumes de uns peixes pequeninos... 

São parecidos a uns que eu costumava apanhar e pôr em frascos quando vinha da escola primária e, mentindo à minha mãe, fazia um atalho pela Fonte do Marau, onde me deliciava a apanhar umas plantas esquisitas de tão requintadas que eram, e uns peixinhos que não o pareciam, mas nadavam por ali... divertia-me imenso... sobretudo depois de me dar conta que tinha roubado os frascos do mel vazio que a minha mãe guardava religiosamente até à próxima colheita, e sentia os braços, curtinhos e redondos, completamente encharcados. E por momentos era criança, uma criança feliz... 

As ondas são baixinhas, e o som do mar confunde-se com o ruído da minha música clássica, que soa de uma sofisticada aparelhagem com som sorround na varanda. Na minha varanda inventada, claro! Por entre um Mozart, um Bach, uma Maria João Pires, vão-se soltando as ondas e sente-se a paz do infinito.
A cozinha, com uma mesa de madeira de carvalho, grande, e com apenas dois bancos compridos, um de cada lado, daqueles que se usavam antigamente, e que a minha bisavó tinha na cozinha... e um fogão a lenha, onde de vez em quando cozo a minha fornada de pão. A um canto da cozinha há uma chaminé, também daquelas antigas, e sob ela jaz uma panela preta de três pernas, semelhante às dos filmes das bruxas, e como a da minha bisavó, da qual guardo muito boas memórias. Há uma banca de mármore, e muitos armários de madeira de estilo rústico. Do outro lado, mais junto à mesa, nasce uma parede que não esconde nada: dela emergem duas grandes janelas das quais se vêm as montanhas. O ambiente é acolhedor e colmatado pelas cortinas de linho.
Regresso à minha varanda, ao meu divã. É um divã de Marraquexe, daqueles de palhinha entrançada e com duas curvas sinuosas em ambos os topos. Sobre essa palhinha uma almofadão revestido a algodão branco pérola. Sentada no divã, com uma pele dourada e luminosa, com um chapéu de abas largas a proteger-me o rosto delicado, e um vestido solto, tento respirar a paz daquele meu cantinho inventado. Não sei onde pára a minha mente, nem o meu espírito. Estou em plena harmonia com os sons e os cheiros que me rodeiam, com o conforto que me é oferecido, e esqueço-me de mim, de tão absorta que estou nessa viagem que faço. 
Está a entardecer e o sol está a pôr-se no horizonte. Levanto-me, e descalça, sigo até à varanda onde me apoio. A brisa torna-se um pouco mais forte e tenho de segurar o meu chapéu. Semicerro os olhos face ao sol que se põe. Sinto o chão sob os meus pés, a natureza ao meu redor, e diante de mim o infinito. E uma paz calma e serena - de quem concluiu tudo o que tinha a concluir, inclusive a tela branca esquecida sobre o cavalete - invade-me, fazendo-me entrar num êxtase de alma, pairar, olhar para o céu e senti-lo dentro de mim, ver o mar e reflectir o seu brilho nos meus olhos, cheirar esta beleza, e expirar paz...Está a arrefecer cada vez mais e o meu vestido esvoaça. Mas não me apercebo do frio que me aconchega a alma. Entretanto vem a Maria com um xaile de lã. Pousa-mo suavemente pelas costas, beija-me a tez, e passa-me para a mão uma caneca de chá branco, perfumado. Sorri para mim e tal como apareceu, esvai-se.
A Maria é a minha ama inventada. É aquela personagem que construí e que nunca deixará de habitar o meu imaginário. Foi uma ama boa, uma companheira estupenda na adolescência, e nunca me abandonou, seguindo sempre lado a lado comigo, dando-me conselhos de vida, com a sua experiência de mulher viúva. Permanece comigo neste meu mundo inventado.

O sol deixa de estar forte, e por isso tiro o chapéu. Bebo o chá quente que transpira o frio da brisa marítima, e pouso a caneca no chão, junto dos meus pés. Agarro-me à varanda e os sons de um piano ao fundo confundem-se com o bater das ondas. O céu fica súbita e gradualmente mais cinzento, pressagiando uma chuvada, quem sabe uma tempestade... não, não é tempestade, porque a areia que está debaixo da minha varanda está seca e mantém a sua cor pálida... quando vem tempestade ela fica húmida e um pouco mais grossa. Enquanto os meus pensamentos se debatem sobre o tempo que irá fazer durante a noite, começa a cair aquela chuva miudinha que eu tanto gosto. A intensidade da chuva vai aumentando, e o abandono o meu xaile junto à caneca do chá, e do chapéu. Salto, pela varanda, para a areia, agora húmida, e o meu vestido cola-se ao meu corpo de tão encharcada que estou. A chuva sobre a minha pele dourada confunde-se com as minhas lágrimas. Mas são lágrimas puras, que vêm de dentro de uma alma sinceramente triste... alguns sorrisos escapam dos meus lábios quando pequenos raios de sol despertam por entre os chuviscos e lá ao fundo, para além da linha do horizonte, forma-se um arco-íris. Estou encharcada, com a roupa colada ao corpo e nunca me havia sentido tão bem, tão... eu. 
A Maria chama-me, preocupada: “menina, menina”. Abandono então os meus pensamentos, salto para a varanda com algum esforço, porque é realmente elevada da areia, e olho para a expressão preocupada da Maria. Já pegou em tudo o que estava ali no chão, e cobre-me com um toalhão fofo, onde me enrosco. 
Ela abraça-me. Afinal sou a sua filha. Sou a filha de uma personagem estéril. Filha do mar.
“A banheira está cheia, pus os sais de banho que mais gosta, o quarto está aquecido, e vou-lhe preparar uma sopinha não vá agora ficar doente” diz-me com a sua voz meiga. “Não te preocupes comigo, Maria, já tenho idade para me cuidar”, respondo. Ouço-a a falar baixinho, mas não percebo nitidamente o que diz... mas imagino que vai a pensar alto... “se não fosse eu, o que seria de si, menina; lá tem idade para se cuidar?!, estas meninas, hoje em dia...”
Dirijo-me ao meu quarto, e vou deixando o meu rasto pois estou tão encharcada que marco tudo por onde passo. Chego ao banho e a banheira fumega; as paredes estão embaciadas, e o ambiente está ameno. Então, dispo-me, e mergulho na banheira, com a água quente a lavar-me a alma pura, com o bafo morno a sugar-me os poros do frio, e o cheiro das violetas e encharcar-me o espírito. Lá fora chove, o sol ainda não se pôs, oiço o mar, mas a Maria já desligou o meu som. Deixo-me estar nesta paz, onde as lágrimas me purificam, e o calor das águas me abraça.
Entretanto uma onda mais forte faz-me sentir que tudo isto é no meu cantinho imaginado, onde tudo não passa de sonho e fantasia, mas onde o mundo que vivo e o que sonho se fundem num só, como uma tela branca, sobre um cavalete, à espera dos traços do pintor. E os pintores da vida somos nós.

“Até logo Bárbara, durma bem” diz-me a Maria, aconchegando-me os lençóis e dando-me um beijo de boas noites.
A Maria despede-se de mim, como uma mãe. Fecho os olhos, enrosco-me nos lençóis e num edredão de penas, e tento encontrar um calor que me insone a alma, como se encontrasse naquela cama os braços de uma mãe que me aconchegam, ou os braços da minha metade, que algures paira, e que ali estariam para me proteger.
A noite chegou, e as penas deixo-as ir com a brisa, porque a alma, essa, jamais estará limpa da tristeza, como a minha tela branca, que sem estar pintada, ficou manchada pela chuva.
“Adeus Maria, dorme bem”...e na minha mente esvoaça o pensamento “quem sabe amanhã já cá não estarei para me adormecer na solidão, para receber os mimos estéreis da Maria, e para mudar a tela do cavalete. Talvez amanhã já eu própria seja mar, música, chuviscos e areia branca. Talvez..."

Bárbara de Sotto e Freire

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